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A Esquerdopatia Brasileira - por Bruno Garcia

... O curioso é que aquele estudante, de braços pouco abertos, se mantendo em pé, na frente de uma fila de tanques de guerra – que automaticamente me sugere a máxima ‘só por cima do meu cadáver’ – me fez lembrar uma conversa que tive com a minha avó no último fim-de-semana. Na ocasião, entre os habituais ‘está tudo bem?’, ‘e esposa, onde está?’ e o ‘você ainda não me levou no seu apartamento...’, por conta de algum motivo, nos surgiu uma discussão a respeito das intenções, ações e comportamento das forças às quais se aplicam as alcunhas políticas ‘de esquerda’ e ‘de direita’, motivada pelas lembranças dos acontecimentos do período da ditadura militar brasileira...

Um hábito que contraí recentemente faz com que eu venha me manifestar novamente aqui no Refratário. Alguns amigos já conhecem meu interesse pela História, mas quero reiterá-lo aqui, justamente porque a Internet tem me trazido reflexões interessantes: diariamente, quando acesso à rede, recorro a alguns sites (especialmente o www.g1.com.br e o www.wikipedia.org) que mostram as notícias, acontecimentos e outras curiosidades que ocorreram nos anos anteriores e estão fazendo aniversário.


No último 4 de junho, o portal G1 republicou uma matéria exibida pelo Bom Dia Brasil em junho de 1999 (vídeo abaixo) sobre o massacre da Praça da Paz Celestial (ocorrido 10 anos antes, em 1989), promovido pelas forças armadas, a serviço do governo chinês, em repressão aos estudantes que faziam protestos contra a falta de liberdade e a má situação da economia da China. A reportagem contém o que creio ser a primeira das imagens relacionadas a embates políticos que se fixou na minha cabeça, ainda durante o período em que eu cursava o ensino médio.

O curioso é que aquele estudante, de braços pouco abertos, se mantendo em pé, na frente de uma fila de tanques de guerra – que automaticamente me sugere a máxima ‘só por cima do meu cadáver’ – me fez lembrar uma conversa que tive com a minha avó no último fim-de-semana. Na ocasião, entre os habituais ‘está tudo bem?’, ‘e esposa, onde está?’ e o ‘você ainda não me levou no seu apartamento...’, por conta de algum motivo, nos surgiu uma discussão a respeito das intenções, ações e comportamento das forças às quais se aplicam as alcunhas políticas ‘de esquerda’ e ‘de direita’, motivada pelas lembranças dos acontecimentos do período da ditadura militar brasileira.

Minha avó, mesmo tendo percorrido uma pequena parte do longo caminho da formação acadêmica tradicional, é provida de uma grande sabedoria, que, creio eu, só os anos de experiência podem dar. Além de me corrigir, dizendo que o último presidente efetivamente eleito antes deste período fora Jânio Quadros e não João Goulart, deposto pelo golpe militar de 1964, nessa conversa, ela me disse o que compreendia como ‘de esquerda’. Entendo que a concepção dela é a mesma em torno da qual tanto eu como quase a totalidade dos brasileiros (ao menos os que nasceram nos últimos 30 anos) fomos catequizados, desde a tenra infância, até o momento de uma efetiva maturidade intelectual. Esta concepção se resume basicamente na dicotomia ‘de esquerda = bom/ do bem’ e ‘de direita = mau/ do mal’. Ou ainda ‘a esquerda defende o que é justo e favorece o povo’ e ‘a direita defende as anormalidades e enriquece aos mais ricos, além de prejudicar aos mais pobres’.

Ainda que eu tenha no meu currículo acadêmico uma passagem pelo Departamento de História da FFLCH-USP, o maior celeiro de esquerdistas do Brasil, não compactuo mais com esta afirmação. E que fique claro que não compactuo, também, com as tiranias. E estas minhas duas convicções são ligadas pelo mesmo elo que une aqui o vídeo do massacre e a conversa com a minha avó: a percepção errônea de que a esquerda luta por um mundo mais livre, mais democrático.

Afinal, uma coisa é o governo da maioria e outra, muito diferente, é o que os esquerdistas chamam de ditadura do proletariado. Os regimes comunistas da antiga URSS, da China, de Cuba, agiram e agem cerceando a liberdade, perseguindo e exterminando os indivíduos que se dispõem a discordar e utilizando-se da maioria não instruída da população como massa de manobra para a implantação e manutenção da tirania, da mesma maneira que as ditaduras chamadas de direita agiram no mundo, ao longo das últimas décadas.

No Brasil não teria sido diferente. O golpe militar ocorreu em um cenário que tem algumas similaridades com o que encontramos hoje na América Latina, a saber:

• A ascensão de governos de esquerda que se valiam do populismo para promover a disseminação das suas teorias como única alternativa justa e viável, frente às mazelas e injustiças pertinentes à sociedade;
• A ligação entre as principais lideranças de esquerda de diversos países, na intenção de implantar mudanças que levassem à eclosão de golpes simultâneos ou em período próximo para a implementação das suas políticas ditatoriais e
• Reviravoltas na economia e a decorrente queda da popularidade dos governantes que, depois de um ciclo próspero de crescimento entravam em declínio ou por conta de falhas na administração ou por conta da ocorrência de uma das fases cíclicas de declínio do sistema capitalista (neste caso, a semelhança com a atualidade é o eminente risco de colapso econômico, que pode decorrer de crises já instaladas e possíveis crises vindouras).

Some-se a isto que a sociedade brasileira tem certa queda pelo autoritarismo. Na linha do tempo da história política brasileira não nos faltam exemplos de tentativas com ou sem sucesso de transformar um governo eleito ou influenciado por muitos em um outro completamente decidido por alguns. Pretendo, inclusive, tratar disso em outro post, mais adiante.

Não creio que caiba aqui colocar os motivos ou pressões que levaram à eclosão do golpe de 1964, e muito menos cabe qualquer justificativa que o valide, mas vale ressaltar que, antes da ditadura militar, as diversas linhas de pensamento ‘de esquerda’ tentaram também, via golpe de estado, se fazer valer frente aos seus oposicionistas, como bem descreve o historiador Marco Antonio Villa, no Programa do Jô, em 24/05:


...o governo apostou sempre, quando havia uma crise, em uma solução
antidemocrática. Que é a questão sempre do golpe de estado (...) mesmo no [caso
do governo do] Jango [João Goulart]. Ou seja, o importante você ter um conjunto
de idéias antidemocráticas, em plena crise, e que vão gerar, depois [em] março,
abril o golpe militar. Você tem também as tendências de esquerda, o brizolismo
apostando na saída via golpe, o partido comunista brasileiro [também,] com Luis
Carlos prestes e o Jango, que tentou inclusive fechar o congresso duas vezes em
62 e em 63...


No Brasil a luta pelo poder, por parte das esquerdas, tanto antes do golpe militar (com as correntes políticas citadas no excerto acima), passando pela luta armada durante o período da ditadura (com os grupos guerrilheiros que se utilizavam largamente de práticas terroristas, e não a favor da democracia, mas pela implantação da suposta ditadura do proletariado, algo que na China resultou no que vemos no vídeo deste post), quanto depois da redemocratização (com a união política entre as esquerdas latino-americanas, inclusive com as FARC, exemplificada claramente pelo Foro de São Paulo – outro assunto que merece um post em momento oportuno) sempre encontrou, na manutenção da democracia, um entrave para implantar o seu ideal de governabilidade.

Isto faz emergir o paradoxo que se inseriu desde a recente ascenção da esquerda ao governo federal: a transformação quase instantânea dos portadores exclusivos da ‘ética’ para os que se tornaram os protagonistas dos maiores casos de corrupção institucional da história; dos opositores de um regime econômico rigoroso e tradicional para os que se mostraram ainda mais rigorosos e alinhados com os princípios que antes demonizavam; dos maiores defensores da liberdade de imprensa para os que se revelaram de maneira oposta, tentando cercear de forma ‘democrática’ a expressão da livre opinião, como se viu na tentativa de criação de um conselho que ‘filtrasse’ o que é publicado na mídia para a manutenção, talvez, ‘da ordem e dos bons costumes’.

Se o meio é o mesmo, o fim, mesmo que similar, segundo o que prega a esquerda seria mais nobre. A esquerda, de maneira geral, entende que os interesses aos quais defende são moralmente superiores aos interesses de quaisquer outros grupos que por ventura venham a se opor aos seus. Em suma, que sua moral é superior à moral do resto da sociedade, conforme se pode observar no que descreve Trotsky em um de seus textos, comentado no trecho abaixo pelo jornalista Reinaldo Azevedo em seu blog:


No livro Moral e Revolução, de Trotsky, o mais inteligente da geração que fez a
revolução soviética, há um texto terrível chamado A Nossa Moral e A Deles.
Poucas vezes li algo tão diabolicamente justificador do crime como o que vai
ali. Trotsky, com efeito, era o mais brilhante da turma, mas esse libelo elimina
qualquer suspeita de que o socialismo teria tomado outro rumo se ele tivesse
vencido a parada contra Stálin. Talvez tivesse sido ainda pior. Ele era
inegavelmente um intelectual. E os intelectuais costumam matar com mais
facilidade do que os brutos, já que são capazes de encontrar motivos mais
nobres. No texto, Trotsky deixa claro que os revolucionários têm licenças que
aos outros são vedadas porque, afinal, são donos da chave do futuro. Se estão na
vanguarda da humanidade, os critérios com que são medidos e medem-se a si mesmos
não são os mesmos dos homens comuns. Se vocês notarem, esse é o fundo
regressivo, humanamente regressivo, da militância esquerdista de qualquer
corrente. Eles estão certos de que a “nossa (deles) moral” é superior à moral
não-revolucionária. (...)



Qualquer semelhança com as atuações da política atual não é mera coincidência. O incrível é que, mesmo com estas evidências permeando os noticiários da telinha quase que semanalmente, a grande maioria da sociedade brasileira demoniza uma direita a quem atribui todos os males da vida. Por outro lado, esta mesma sociedade se mantém identificada, com ou sem militância, como esquerdista. É lógico que as diferentes opiniões são além de necessárias, essenciais para o amadurecimento da democracia e da consciência política de um país, mas aquela dicotomia à qual me referi no início do texto entre a ‘esquerda do bem’ e a ‘direita do mal’ não se caracteriza como esquerdismo, mas sim como esquerdopatia.

A mim, particularmente e com respeito das opiniões contrárias, me parece que o rumo do Brasil para um lado ou para outro tem uma infeliz coincidência com a posição das teclas de um piano, quando este é tocado por um músico: quanto mais para a esquerda, mais grave.

Segue o vídeo. Vale a reflexão.



P.S.: Lá no início do texto fiz referência ao G1. Dois dias depois que comecei a escrever este post o vídeo não estava mais disponivel na globo. Restou este do bom e velho youtube, que nunca falha... Caso a globo resolva publicar novamente o vídeo, eu o devolvo aqui.




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